Pena, Cabaça e Cruz


KOTTER EDITORIAL

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Uma dramaturgia-manifesto, em direção a um afrofuturo. Em Pena, Cabaça e Cruz, acompanhamos a jornada de Akim, um jovem negro que, em outra dimensão de tempo-espaço, como que num sonho, encontra os embaixadores de Ìgbò, de ?`y? e de Aksum, que lhe conduzem numa “viagem para o entendimento”. A obra se aproxima do afrofuturismo, movimento que mistura ficção científica com ancestralida­de africana, imaginando novos possíveis para a população negra.Desde as primeiras linhas, o texto já prediz a que veio: não é apenas uma dramaturgia com temática antirracista, é uma dramaturgia-mani­festo, uma peça-revolução. O ato inicial nos dá um forte recado acerca de uma hipótese que será reafirmada e encarnada pelos personagens ao longo de vários atos: é através das massas, da periferia, dos menos favo­recidos, que se dará a revolução descolonial.Nessa ação primeira, faxineira, bilheteira, eletricista, bombeira, fa­z-tudo, auxiliares de camarim, os seguranças, a produção, gerente, se­cretária, aderecista, maquiadores, cenógrafo, sonoplasta, iluminadora, direção, ou seja, os trabalhadores dos bastidores do teatro, se juntam para gritar “Fora, foro privilegiado!” Da mesma maneira, na cena intitu­lada como Marcha do Contragolpe, os protagonistas são uma escritora negra, um filósofo Indígena, uma jovem preta, um cacique suruí, ativista trans, uma deputada trans, entre outras minorias representadas, todos em guerra junto com a multidão.Dramaturgia que ilumina também uma geração consciente de seus direitos e de seu papel frente às mudanças socioculturais, representada pelos jovens da Rádio Loucal, de loucura no sentido de transgressão, mas também de local, de território, lugar de referência e de fala. É uma solução dramatúrgica muito inteligente para criar uma camada crítica às grandes temáticas da peça, sem tornar o texto didático.Através desses jovens, chamados de Mano, Mana e Mina apren­demos a subverter a lógica das expressões racistas e restaurar o valor da identidade negra, a exemplo do “Jornal Coisa de Preto” e da expressão “deixando escurecido”. Conectados com nossa era, eles são questionado­res e nos fazem pensar sobre a seletividade da cobertura midiática.Muitas vezes, percebemos o quanto a realidade parece mais inve­rossímil ou absurda do que a ficção. No universo desta peça, os persona­gens que representam classes privilegiadas expressam um entendimento equivocado acerca do que vem a ser democracia, ativismo, movimento feminista e direitos indígenas, por exemplo. Acompanhamos a gravação de uma campanha publicitária na qual a água, supostamente tratada, é recomendada à população, sem qualquer pudor, embora nenhum téc­nico tenha coragem de bebê-la. Noutro ato, vemos uma propaganda armamentista na qual o slogan principal é: “Desarme o ladrão, não de­sarme o cidadão”.Assustadoramente, a semelhança com a realidade não é coincidên­cia. O autor, de maneira muito perspicaz, estrutura essas cenas ancora­das em estratégias cômicas, porém com o objetivo explícito de crítica social, característica da sátira.Por outro lado, quadros do cotidiano da população negra nos são apresentados ao longo da peça, mostrando o quão distópica é a realidade. Revista policial arbitrária, famoso baculejo, acusação de roubo, homofobia, os “autos de resistência”, a guerra às drogas, o genocídio da juventude negra, a corrida de um pai por justiça, a dor de uma mãe preta que vela seu filho ainda criança, sonhos interrompidos…Numa roda de capoeira, a narrativa de mais um genocídio de um jovem negro, que driblou o assédio da morte na infância e foi do interior à capital com a família, em busca de mudança. E se os núme­ros das estatísticas seguem cruéis com o povo preto, cada criança que nasce pode ser vista, na ótica dessa peça, como uma compensação às que são exterminadas. Assim, parir vira um ato de resistência.Coerente com sua proposta descolonial, o texto traz no vocabu­lário de seus personagens expressões em dialetos e idiomas ancestrais, além do que pode ser chamado de pretoguês, na contramão do apa­gamento do legado africano na nossa história e cultura, pois, como diz a Vovó na tenda esotérica: “o maior golpe contra nosso povo foi ter apagado nossos nomes, tentar jogar areia na estória”. Nesta cena, mais uma situação de racismo é escancarada, desta vez um relato de racismo estrutural no ambiente de trabalho. A vovó é quem explica uma possível origem desse mal: “O racismo é muito antigo, é uma forma de inveja, de defesa, um rancor muito primitivo. Para os bran­cos é muito difícil se desfazer disso, e muitos de nossos irmãos ainda se deixam afetar”.Os personagens têm diálogos afiados e a peça tem algo de docu­mental, pois nos apresenta dados concretos sobre a experiência cotidiana do jovem negro nas grandes cidades do Brasil, seja através das ações ou mesmo das rubricas, que, por sua vez, são épicas, cinematográficas, poé­ticas até. A peça traz um arsenal de informações históricas e, certamente, lê-la é uma experiência de formação cultural e cidadã, embora nos dê um nó na garganta e uma angústia justamente por sabermos que não se trata apenas de ficção. É um texto manifesto aliado ao melhor que se pode pensar na esteira do artivismo.Assim como os ensinamentos dos embaixadores de Ìgbò, de ?`y? e de Aksum, no sonho de Akim, esta dramaturgia nos convida a uma missão descolonial, a construir um mundo onde o desejo seja uma força capaz de fazer as coisas acontecerem. Neste sentido, podemos falar de utopia como aquilo que aponta para um futuro possível, ou para um afrofuturo possível, resultado de um sonho acordado, como bússola a nos orientar nessa jornada. Como diz o embaixador de Ìgbò: “o que a gente quer é o fruto da trans-ascendência.”Boa leitura e boa viagem.Eduardo Machado