Asfalto

JUNKES, DIANA
LARANJA ORIGINAL

55,00

Estoque: 24

Desde que a conhecemos, de diversos modos, a poesia sempre lidou com o que se fez em ou após uma desolação, uma morte, um luto, uma guerra, uma tirania, a Shoah, uma epidemia... Lembro-me de alguém que lambuzava seu corpo em cinzas, rolando nela, arrancando os cabelos, ao saber da morte de seu amor do mesmo sexo; lembro-me de outro sujando seu corpo de bosta, lambuzando-a em seu pescoço, quando soube da morte de seu filho; lembro-me de outra, crua, que, enquanto o tirano a lançava à morte, ela se lançava a enterrar seu irmão. Os exemplos seriam intermináveis. Como quem faz um gesto de fratura no tempo, posso lembrar do nosso agora, guardando na memória os que, hoje, procuram um caminho para ritualizar seus mortos; ou as mães de meninos jovens e adultos negros tentando o impossível de varrer suas dores do coração quando seus filhos e maridos e pais são propositalmente assassinados pela polícia ou pelo exército; ou de todas e todos que são obrigadas e obrigados a fazer esse trabalho, imenso e cotidiano, de lidar com o dia seguinte ao fim, dando a ver que o fim, mesmo nessas situ ações, ainda é uma ilusão, e que se tem mais um dia pela frente. Poderia guardar na memória todos esses que hoje arriscam suas vidas no asfalto, nos meios-fios, nas esquinas e calçadas de qualquer cidade, pois o que deveria ser o lugar público e político do acolhimento de demandas populares tornou-se aquele, inóspito, em que, sem que possamos mais os habitar, vidas estão subjugadas ao poder perverso do Estado ou de quem quer que, mesmo momentaneamente, assuma o seu lugar. Sendo o asfalto o espaço privilegiado das cidades do nosso tempo, há, em Diana Junkes, uma didática da poesia, uma política da poesia, um modo delicado e preciso de a poesia intervir no mundo, formulado da maneira mais nítida para que possamos sair do terrível em que estamos, para que possamos ir a algum lugar que aplaque nossa doença histórica e a em que voltamos a despencar em nosso passado recente: “olhar o presente bem nos olhos”. asfalto é um livro que quer “olhar o presente bem nos olhos”, olhando-o para ver e ser visto pelo seu tempo, o que significa o mesmo que ver as manchas e buracos de nossa história deixando-os contaminarem, a cada verso, os poemas. Aqui, quando deus não vê, poesia é assumir uma posição de ver, quando deus não escuta, de escutar, quando deus não sente, de sentir, quando deus não fala, de falar. Se o deus que se louva em tempos e templos hodiernos é insensível ao que nos é enfiado diariamente goela abaixo, a poesia lida exatamente com esse travo, humano, histórico e atual, na garganta, buscando um processo que leve a seu destravamento. Assim, a poesia fala e, falando, a poesia fala daqueles e com aqueles que o imaculado da história, do tempo e dos templos não queria que falassem, dos e com aqueles que “jazem sem língua”, a poesia fala dos e com aqueles que fazem a cidade parar: de e com quem conduz uma carroça carregada de papelão molhado pela chuva impedindo o tráfego no asfalto de uma cidade, de e com corpos negros perfurados até a medula num carro que transita por um subúrbio, de e com homens velhos sentados ao meio fio pedindo um prato de comida, de e com um filósofo suicidado pelo totalitarismo, de e com um garoto que trabalha no xerox, de e com pequenos operários, de e com um garçom, de e com uma maria qualquer e de e com tantos outros mais ou menos afins. Lembremos que, “olhando o presente bem nos olhos”, a poesia de Diana Junkes fala e, falando, ajuda cada um de nós, como diz um de seus versos, partir a corrente de nossa própria ilusão. Ainda assim, a poeta sabe e nos diz que poemas não bastam. Sim, eles não bastam mesmo, mas, sem eles, sem os assombros como os que asfalto nos traz – isso é certo –, tudo seria ainda infinitamente pior. Alberto Pucheu
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